O DSM E A CID: UMA QUESTÃO DE CLASSE?

“Apesar de dar nomes às coisas que conhecemos, nós não necessariamente as conhecemos porque as nomeamos.” (Homer W. Smith,fisiologista americano 1895-1962)

“Quem de nós é original, exceto na forma?” (Will Durant, filósofo e historiador norte-americano, 1885-1981)

“O médico deve generalizar a doença e individualizar o doente.” (Christoph Wilhelm Hufeland, Médico alemão do século XVIII).

“Biologicamente e fisiologicamente, não somos tão diferentes uns dos outros; historicamente, como narrativas, somos, cada um de nós, únicos.” (Oliver Sacks, neurologista americano contemporâneo) 

“Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória” (Jose Saramago, escritor português, 1922-2010).

O DSM-5 é o Manual Estatístico e Diagnóstico de Transtornos mentais na sua 5º versão elabora em 2013 (1). Sua versão anterior o DSM-IV (2) foi confeccionada em 1994, com correções e atualizações no denominado DSM-IV-TR em 2000(3). As versões deste manual, que se estendem da primeira á quinta edição possuem como instituição reguladora a chamada “Associação Americana de Psiquiatria”, conhecida como APA (do inglês, American Psichiatric Association), sendo que muitos dos estudos para testar a fidelidade dos novos diagnóstico foram patrocinados pelo Instituto Nacional de Saúde Mental Americano (U.S. National Institute of Mental Health – NIMH) e muitos dos critérios adotados foram expandidos pela Pesquisa em Critérios Diagnósticos em Psiquiatria (Research Diagnostic Criteria – RDC). Tais edições do DSM contemplam, à sua época, os aspectos clínicos, estatísticos e epidemiológicos dos transtornos mentais, sendo um instrumento diagnóstico muito utilizado pelos psiquiatras e pesquisadores em saúde mental.

A Classificação Internacional de Doenças, em sua décima versão (CID-10), elaborada em 1992, regulada pela Organização Mundial de Saúde engloba todas as condições clinicas em medicina, inclusive a dos transtornos mentais.

Alguns destes sistemas contemplam o mesmo grupo de patologias e transtornos. E, isto acontece, por exemplo, entre a CID-10 e o DSM-5 quanto aos transtornos mentais. Possuem algumas diferenças e similaridades. São produtos de uma geografia e de uma história diferentes. Em suas atualizações e para novas versões busca-se um esforço de aproximação entre estes sistemas. São elaborados por um grande número de especialistas nomeados de várias partes do mundo.

No campo da saúde mental, tais sistemas são frequentemente alvos de criticas e polêmicas diversas. Muitos dizem que servem para ‘categorizar”, “classificar”, “colocar em gavetas”, os portadores de algum tipo de transtorno mental – uma questão puramente de “classe”, num sentido pejorativo, uma falta de classe.

De fato, possuem critérios operacionais para classificação e diagnóstico de tais condições. No entanto, tais sistemas classificatórios enquanto um de vários instrumentos da prática clinica se prestam a um uso mais adequado e funcional. Advêm de anos de pesquisas e experiência clinica acumulada, são úteis para uma padronização internacional de diagnósticos, apropriados à comunicação, pesquisa, além de codificarem atestados, laudos e pericias, e evitarem a exposição descritiva da patologia de seu portador.

Os transtornos mentais são síndromes clinicas, isto é, um conjunto de sinais (o que é objetivamente observado) e sintomas (o que é relatado pelo paciente e seu familiar). Particularmente o DSM-5 é ateórico, ou seja, busca não se apoiar em escolas e teorias psicológicas, diferentemente de suas primeiras versões. Envolve questões transculturais (disto decorre a importância de duma força tarefa internacional), e além de uma classificação categorial, em muitas partes, também permite uma abordagem multidimensional (inúmeras dimensões de sintomas e situações clinicas) e de um espectrum (ou continuum) de manifestações de seus sinais e sintomas, desde leve a grave, até uma sobreposição de síndromes, que podem tratar-se de uma mesma condição ainda não contemplada com um único nome, como por exemplo o transtorno do espectro autista, do espectro psicótico. Muitos especialistas acreditam num espectro dos transtornos psicóticos, do transtorno obsessivo compulsivo e da síndrome de Tourrete (ou continuo esquizo-TOC-Tourrete), ou ainda do espectro do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, do transtorno bipolar e transtorno obsessivo compulsivo (ou contínuo TDAH-TAB-TOC). Adicionalmente muitas síndromes se interseccionam existindo sintomas e sinais de similares de ambas, como nos sintomas ansiosos e depressivos. E, também, frequentemente ocorrem mais de uma síndrome clinica, condição denominada de comorbidade.

Existem outros sistemas de classificação em medicina. Assim, sociedades ou associações médicas de grupos de especialistas em determinadas área possuem classificações, como as dos problemas relacionados ao sono (4), das classificações de cefaleias (5), entre outras inúmeras categorizações. Também á titulo de citação, critérios diagnósticos fundamentados em sinais, sintomas e exames complementares são tradicional e historicamente utilizados em outras áreas médicas como reumatologia (critérios para artrite reumatoide, para lúpus eritematoso sistêmico, síndrome miofascial, fibromialgia entre outras condições), em pneumologia (na doença pulmonar obstrutiva crônica, asma, etc), na geriatria (como na síndrome de fragilidade do idoso, na síndrome pós queda, nas síndromes demenciais, etc), em diversas áreas da medicina

Os sistemas classificatórios se modificam com base em dados da literatura, grupo de especialistas e consultores do mundo todo como no DSM-5 e CID-10, e até mesmo de sugestões online oferecidas e abertas por contato eletrônico a médicos especialistas de quaisquer nacionalidades.

Toda a vez que ocorrem mudanças nos sistemas classificatórios, suscitam-se polêmicas e conflitos. Nestas mudanças ocorrem expansões, desenvolvimentos e benefícios e também são quebradas algumas expectativas e supostas tendências.

No entanto os especialistas clínicos buscam outras questões muito além de uma operacionalização e categorização diagnóstica.

Particularmente a prática clinica psiquiátrica e psicoterápica, exige-se pensar não apenas em uma doença e seus fatores biológicos, mas no indivíduo que adoece, em seus aspectos desenvolvimentais, em suas relações interpessoais, em seu contexto ambiental, em fatores precipitantes (gatilhos para patologia se instalar), fatores mantenedores (envolvidos na manutenção do adoecimento), nas inúmeras funções que o quadro clinico possui, nas variadas dimensões de sua vida, tais como a das dimensões social, familiar, acadêmica e/ou laboral, financeira, afetiva/sexual, cultural e noética (o que dá sentido á vida), entre outras e nos fatores protetivos e de resiliência opostos ao adoecimento.

Como em qualquer outra prática médica de qualidade, faz-se necessário a realização de uma avaliação fundamentada na história clinica atual e pregressa (muitas vezes sendo necessário a entrevista dos vínculos mais próximos ao paciente), nos antecedentes pessoais e familiares, no interrogatório dos diversos órgãos e sistemas, no exame físico, no exame do estado mental e quando necessário em exames laboratoriais e de imagem, e mesmo em avaliações longitudinais (seriadas), visto que nem sempre numa única avaliação é possível contemplar todos o quadro É imperativo a exclusão de condições médicas e neurológicas, enquanto causas primárias dos transtornos mentais e/ou condições comórbidas. Em psiquiatria clinica, é mandatório pensar nas teorias psicológicas relacionadas e subjacentes ao quadro clínico. Imprescindível refletir na evolução e prognóstico considerando todas as informações clínicas. Por fim busca-se elaborar ou se aproximar de um diagnóstico formal fundamentado no DSM-5 e na CID-10

Deve-se prosseguir então com as orientações pertinentes, a discussão transparente e compartilhada com o paciente sobre múltiplas abordagens como as medicamentosas, psicoterápicas, de neuromodulação (técnicas aperfeiçoadas pela física médica, de crescente uso para condições clinicas especificas, fundamentadas nas bioaplicações de campo elétrico e/ou magnético que estimulam e/ou inibem certas áreas cerebrais, obtendo-se resultados terapêuticos), o regime de tratamento, como o de consultório (ambulatorial), o de hospital-dia (semi-internação), ou de internação integral em hospitais gerais ou psiquiátricos. Recomenda-se explicar o chamado termo de consentimento livre e esclarecido, para que o paciente opte por consentir ou não com a abordagem utilizada. Desnecessário dizer quanto á necessidade de dirimir todas as dúvidas, discutir com o paciente o custo versus efetividade de cada intervenção, seus efeitos colaterais, adversos e os riscos associados, assim como o risco de não se intervir na condição psiquiátrica em evolução. Quando necessário deve-se encaminhar o paciente para outros profissionais (por exemplo, psicoterapeutas, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas nutricionistas, acompanhante terapêutico, cuidados de enfermagem, e mesmo de home-care na dependência da condição clinica), solicitar a avaliação de outros especialistas médicos, sempre ponderando e respeitando a decisão do paciente ou seu responsável legal.

Tudo isto exige tempo, reflexão, num processo em que o clinico consulta também seu auto acervo de livros e artigos lidos, de aulas e cursos assistidos, de sua experiência com outros casos e da troca de informações com seus iguais. Quando diante de uma questão clinica complexa a ser resolvida, deve-se buscar a literatura médica atual pertinente, repensar, ou mesmo discutir com outros médicos mais experientes (supervisores), num processo de aprendizagem em espiral e bayesiano, melhorando tanto sua prática quanto os cuidados para com seu paciente.

Sendo assim, pessoalmente refuto uma suposta ironia contida numa citação de um médico contemporânea americano, Eric Cassel, de que “‘Mal’ é o que o paciente sente quando vai ao médico e ‘doença’ é o que ele tem quando volta para casa.”.

Torna-se óbvio que o os sistemas classificatórios são apenas instrumentos, cabendo-lhes um bom ou mau uso. Inúmeros outros instrumentos são utilizados na pratica médica, como o estetoscópio, o esfigmomanômetro, exames laboratoriais e de imagem, escalas psicométricas, avaliação neuropsicológica, avaliação psicodiagnóstica, diário de sintomas, o registro da evolução clinica, além de muitos outros que auxiliam a boa prática clinica e de pesquisa. Instrumentos pertencem á “classe da utilidade”, ou seja, ao empregá-lo, utiliza-o para um determinado fim. A “classe da fruição” (advinda do fluxo, do usufruir, do “saborear”) muitas vezes é produto do bom uso da “classe da utilidade”. Analogamente, podemos dizer, que o CID-10 e o DSM-5, como instrumentos, da classe da utilidade, são utilizados em combinação e complementaridade, para se obter diagnósticos e condutas médicas, para uma dada fruição, no caso a efetividade clinica. Epicuro em seu tempo (341 a.C. – 270 a.C.) proclamou “Qualquer argumentação filosófica que não tenha como preocupação principal abordar terapeuticamente o sofrimento humano é inútil; Assim como a medicina não traz benefícios se não liberta dos males do corpo, o mesmo sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma”(6) Suplanta-se uma desatualizada e infrutífera questão, transpassando uma mera questão categórica – isto sim seja talvez, uma questão de classe, mas de boa classe.

Segue video da mesa redonda apresentada no evento “Conferência Neurociência e Psicanálise 2014” sobre as classificações e com participação de importantes nomes da psicanálise e psiquiatria.


Referências

  1. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Arlington. 2013.
  2. Shaffer, D. A Participant’s Observations: Preparing DSM-IV. Can J Psychiatry, Vol 41, August 1996
  3. American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – 4th Ed. (DSM-IV-TRTM, 2000).
  4. International Classification of Sleep Disorders – Third Edition (ICSD-3) Westchester, Ilinois, USA, 2014
  1. Road C. The International Classification of Headache Disorders, 3rd edition (beta version). Headache Classification Committee of the International Headache Society (IHS).Cephalalgia, 2013 Jul;33(9):629-808
  2. Rosa, Carlos Eduardo Rosa, Dmetruk, Ricardo Baroneza. Comportamento Governado por Regras, Esquemas e Produtos Cognitivos, Paradigma da Equivalência de Estímulos, e Quadros relacionais: Um diálogo possível para a compreensão de comportamentos complexos? Trabalho de conclusão de curso apresentado ao PSICOLOG – Instituto de Estudos do Comportamento como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Psicoterapia Analítico-Comportamental e Análise do Comportamento. Ribeirão Preto/SP. Maio/2013, p.116